terça-feira, 23 de outubro de 2012

Nossa incompletude


Nunca me canso de refletir sobre a ideia bíblica de que o início da vida ocorreu no paraíso, onde nada faltava. Logo depois, independentemente das razões, vem a expulsão desse lugar e o início de nossas dores. O que mais me impressiona é que coisas acontecem dessa forma mesmo: estávamos no útero, protegidos, alimentados e livres de todas as dificuldades. Assim se forma o nosso cérebro, cujo primeiro registro é o do delicioso equilíbrio e paz. De repente, vem a ruptura da bolsa e o início das dores do parto.

A expulsão se dá e, a partir daí, temos frio, fome, sede, dores e a sensação de abandono e falta de proteção. Ou seja, nascer significa uma transição dolorosa: passamos de uma situação satisfatória para outra pior. Se o primeiro registro cerebral é, como disse, o de paz e harmonia; o segundo corresponde à inesperada ruptura do equilíbrio, que provoca uma experiência traumática. Estou usando o conceito de trauma no seu sentido correto: a experiência marca e deixa cicatrizes que irão influir definitivamente sobre o nosso destino e sobre a evolução da nossa subjetividade.

Do nascer sobra a cicatriz física, que é o umbigo. Resta também uma cicatriz psicológica que corresponde, entre outras coisas, a uma nostalgia da condição anterior. Parece que essa sensação nos acompanha ao longo de toda a vida.

Sentimos sempre que algo está nos faltando; que estamos, de certo modo, incompletos. Por mais agradável que esteja a vida, há sempre uma lembrança da perfeição perdida, que nos provoca um gosto amargo e uma certa insatisfação. A lembrança do útero, do paraíso, nos persegue e é capaz de tirar parte do prazer que porventura estejamos sentido.

Ficamos, pois, definitivamente comprometidos com essa sensação de algo incompleto. Parece que temos um permanente "buraco" na boca do estômago. Essa impressão – universal – é, provavelmente, responsável pelo sentimento de inferioridade presente em todos nós. Nós a percebemos, mas não imaginamos que outros a sintam; assim, julgamo-nos inferiores.

Várias são as consequências de a vida ter se iniciado dessa forma. A mais marcante talvez seja a que diz a respeito ao fenômeno amor. A dramática sensação de desamparo que vivenciamos ao nascer se atenua quando nos reaproximamos fisicamente de nossas mães, sobretudo na hora da amamentação. Aprendemos que o "buraco" fica menor com a sua presença física, com sua proteção concreta e também com o aconchego abstrato que ela nos faz sentir. É no colo dela que experimentamos a sensação mais parecida com a do paraíso uterino definitivamente perdido.

Buscamos ficar próximos de nossa mãe porque ela nos traz de volta a paz e a harmonia que um dia sentimos como permanentes. Só que agora isso se alterna com períodos de dor, desespero e angústia. Não há como estarmos sempre no colo da mãe, aconchegados por sua presença protetora.

Se definirmos o amor como o desejo de reencontrar o que foi perdido com o nascimento, por meio da aproximação física (e depois espiritual) com outro ser humano – que nos dá a sensação de completitude que não temos quando estamos sós –, compreenderemos que nosso primeiro objeto de amor é a mãe. Descobriremos também que todos os posteriores são substitutos desse original. Como o desejo de nos completarmos nos persegue ao longo de toda a vida, podemos dizer que o amor é um dos desdobramentos fundamentais do trauma do nascimento. Se nascer não fosse uma transição para o pior, para a dor, com certeza não existiria o amor; ao menos como nós o conhecemos.


Flávio Gikovate

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